A escova
Muidumbe - Cabo Delgado - Moçambique - Planalto Maconde.
Agosto de 1967. Lá estava o navio Niassa, atracado no
caís da Fundição em Santa Apolónia, pronto
para nos levar a todos, para terras de África, das quais
só conhecíamos os nomes,aprendidos nos bancos de escola.O
nosso batalhão, ia cumprir uma comissão de dois anos em
Moçambique - Cabo Delgado.
Na viagem de comboio, nocturna, que nos levou de Estremoz a Lisboa,
bebemos, cantamos e choramos. Revivemos os últimos dias passados
com a família, antes da grande viagem.Ainda sentíamos no
corpo o último abraço e nos lábios o último
beijo.Nas malas e nos sacos de viagem, também viajavam com a
tropa os últimos mimos da
família....presuntos,chouriços,conservas, queijos dos
mais variados sítios, tabaco e um ou outro garrafão de
vinho.Foi um quebra cabeças para arrumar estas iguarias
juntamente com o diverso equipamento militar que nos tinha sido
distribuído, poucos dias antes da partida.
Na minha mala, também ia a minha Escova, de pêlo escuro e
madeira castanha clara, a qual serviria para puxar o brilho às
botas, quando fosse necessário.
Já em Cabo Delgado. na aldeia de Muidumbe, em pleno planalto
Maconde,rapidamente apercebi-me que não iria dar muito uso,nem
à minha Escova,nem às botas, nem à lata de pomada
preta. Era só mato.
Tomei então a decisão de arrumar definitivamente as botas
e a lata de pomada dentro da mala, e soltei a minha Escova.A partir
desse dia, passou a ser a minha cadela,a Lassie.Com
um cinto, fiz-lhe uma trela, e saí com ela pela porta da
caserna, a caminho da cantina, indiferente ao olhar de espanto de
todos, que nunca tinham visto nada igual - mais um cacimbado, disseram.
A Lassie partilhou comigo, tudo aquilo que era possível
partilhar, o medo, a solidão, os copos, as colunas,as picadas,as
emboscadas.Sempre ao meu lado, no banco da Berliet, não muito
longe da G3. Nunca se lastimou, apesar de ser constantemente gozada
pelos restantes tropas, com piadas, tais como - Ó maluco a
cadela tem carraços - Ó 142 a cadela já teve o cio?
Eu, fui perdendo a minha identidade militar, deixei de ser o soldado
142, para passar a ser o gajo da Lassie, o maluco, o apanhado pelo
clima. Pelo Natal também tinha a sua prenda, a minha,mas nunca
recebeu nada do Movimento Nacional Feminino: Era um cão.Com o
tempo a Lassie ganhou fama e eu era a sua sombra.
Chegou o dia em que tivemos de deixar Muidumbe por troca com outra
companhia. O novo destino era a cidade de Tete. A Lassie iria comigo,
compraria uma nova trela, passearia comigo pelas avenidas da cidade.
Este seria o seu destino, não fosse Pedro Maconde.O ajudante de
mecânico, nascido e criado em Muidumbe, vinte e poucos anos,
negro, negro como a noite, grande como uma torre, olhando-me nos olhos,
com um sorriso enorme, disse-me - " o soldado não leva Lassie,
Lassie ficar comigo, assim eu falar com ela, como patrão
fala,aqui é terra dela". E ficou. Entreguei-lhe a Lassie,
perante o riso geral. Já em Tete, e passados longos meses,
escrevi um aerograma, para a companhia de Muidumbe a perguntar pela
Lassie, responderam-me que o Pedro Maconde, tinha sido incorporado no
exercito e tinha levado a Lassie. Emocionei-me, o Pedro foi o
único a compreender, que a Escova, não era uma escova.
José Manuel Nobre ( Ex-Soldado Condutor - Batalhão 1923 - Esquadrão de Cavalaria 1728) Muidumbe- Moatize - Tete - Lourenço Marques.
Dedicado a todos os que lá ficaram, sobretudo aos meus 4 companheiros Amável, Guerra, Braga e Biu-Biu. Esses, como diz a canção do Adriano Correia de Oliveira "voltaram numa caixa de pinho".
Apontamentos de Outubro de 1967 a Abril de 1968.
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