Estávamos naquele tempo, em Novembro de 72. Corriam as chuvas da estação quente.A paisagem exalava
o odor a terra molhada, terra vermelha como o nosso sangue, matope forte, consistente, pegajoso, que prendia em si
as nossas botas e diminuía a estuga das caminhadas.
Tínhamo-nos deslocado de Mueda para Nancatári , a sul,
com a missão de substituir um pelotão deste
aquartelamento,
que tinha saído numa operação de patrulhamento com
a duração estimada de vinte dias.
Aqui em Nancatári iríamos permanecer
durante pelo menos esses vinte dias, aguardando
instruções.
Foi pois ao terceiro dia de estância nestas
paragens, dia cinco de Novembro que ordens superiores ditaram:
Iríamos abrir, limpar de minas o trajecto
até Muirite, ainda mais a sul, para a passagem segura da coluna
de
reabastecimento logístico, vinda de Porto Amélia, a capital do distrito.
Assim foi instruído o Alferes Bonina,
comandante do Pelotão e assim fomos informados, nós os
comandantes de
cada uma das três Secções: Neves Silva, Duarte e Lopes.
De Nancatári a
Muirite são cerca de vinte perigosos quilómetros. Sim, os
quilómetros aqui em Cabo Delgado, levam
o adjectivo perigosos, porque
são mesmo perigosos, os perigosos caminhos do norte de
Moçambique. Bonitos não fora
a guerra, perigosos porque é a guerra.
O perigo aqui,
já o conhecemos bem, por experiência vivida. Tem duas
versões: as traiçoeiras minas debaixo do chão
e as flagelações das Kalashes(1), dos turras(2) emboscados nos flancos.
O trajecto
fazia-se em coluna de viaturas militares sempre atascadas, sempre
atoladas no matope, sempre aos
ziguezagues tentando evitar a
lama. É assim quando chove nesta terra vermelha. Torna-se penosa
a tarefa de fazer
avançar os carros. Torna-se difícil descobrir as minas.
Os flancos do
caminho alternavam entre abertas clareiras na savana e cerrados trechos
de vegetação, misteriosos,
enervantes e ameaçadores.
O calor era
mais que muito e suava-nos o corpo, desidratava-nos a alma e secava-nos
os cantis. A minha secção,
na frente das viaturas, vinha
picando havia duas horas de trabalho monótono,repetitivo,
cansativo. A progressão era
lenta e pesada como o andar de um
paquiderme. Todos os suspeitos palmos de terra, eram esquadrinhados,
remexidos,
com suavidade, com
atenção, com medo, tentando sentir o toque do pontiagudo
ferro da pica(3), no corpo da mina escondida.
Iam-se
espetando as pontas de aço no solo aqui, além e mais
além. Jogava-se a vida em cada metro de caminho.
Dura e
perigosa esta missão de picador, de levantador de minas,de
batedor, morredor.
Estava na hora de se
mudarem os jogadores desta “roleta russa”. Já nos
doíam as botas atascadas na lama.Na ponta da vara
dos pesquisadores os “pratos
detectores”, obsoleta tecnologia sobrante da segunda grande
guerra, iam incrementando o seu
pesado peso com o passar das horas. Os
ouvidos atezanavam com o silvo dos auscultadores. Nesta missão,
o cansaço não é bom
conselheiro,torna-se perigoso. Toda a
atenção é sempre pouca. Era urgente a
rendição dos meus homens.
O Furriel Avelino
Duarte, o madeirense, na rectaguarda da coluna, ordenou aos seus
soldados que fossem subsistuir a minha
secção no batucar das
picas e no manusear dos pesados detectores electrónicos de
minas, enquanto fazia questão de ali continuar
mais uns minutos, “mastronçando” ainda da sua ração de combate.
O Cabo Magalhães,
nervoso, de espingarda descambada pelas descamisadas costas abaixo,
pendurada na bandoleira, obedeceu
reticentemente. Estava revoltado. O
Comandante da sua secção, não o acompanhava no
perigo. Não gostou de ouvir a ordem.
Marchou martelando as botas no
pastel vermelho do chão, desabafando com a espontaneidade do que
pensava ser sua
verdade, a sua justiça:
-Pois, vai lá atrás a lamber a piça e eu aqui á frente a trabalhar!
O Cabo Magalhães tinha cuspido
uma frase forte, feia, alarve, palavrosa, ofensiva. Teria sentido
alguma razão no seu
sentido de lógica, pois
como se diz: “O comandante não deve abandonar o barco e
quando o faz deve ser o último a fazê-lo”.
Não
gostou o Furriel de se ver assim apodado de cão. E a sua
esferográfica saltou furiosa, “foçando” na
agenda
o registo da ofensa.
Tivesse o Cabo dito:
-Vai lá atrás a coçar os colhões- e talvez
a caneta tivesse ficado calma,dentro dos bolsos do Furriel.
Pois coçar os
colhões era um chavão, um lugar-comum, era quase um
bordão na gíria militar e por isso, talvez mais
tolerável na pena do Furriel.
E além disso nesta guerra
também havia muitas comichões a coçar, desde a do
célebre”feijão-macaco”(4), até
às repetidas
“Comixões” de
Serviço dos Primeiros e Segundos Sargentos, entre outros
“Chicos”5. Mas não foi isso que o Cabo
disse ou quis significar. E as
palavras ditas, ditas ficam, e a ocorrência ficou lavrada no
Relatório da Acção e viajou
pelas vias das hierarquias,
até acima, ao Comandante, que após todos os autos, agiu
de acordo com o RDM (Regulamento de Disciplina Militar).
E assim no dia
Sete de Março de 73, quatro meses depois dos factos, sairia na
Ordem da Companhia:
Ordem de Serviço Nº 19 de 07MAR73 DA R.M.M. (Região Militar de Moçambique)
“ Puno
com 15 (quinze) dias de prisão disciplinar agravada o 1º
Cabo N/M 03946770, José
Teixeira de
Magalhães da C,Caç 4140/BC 15, por no dia 05NOV72,no
percurso de picada de
Nancatári-Muidine não ter obedecido prontamente à
ordem do Comandante da força Fur. Milº SILVA
DUARTE para
que prosseguisse o trabalho da picagem e detecção de
minas, ordem que acabou por
cumprir, mas
ripostando à mesma em alta voz, nomeadamente exclamando
“Vão lá atraz a lamber a
piça e eu
aqui a trabalhar”. Mais tarde de regresso a Nancatári e
estando a esclarecer os factos com
aquele Furriel e o Alferes
Bonina ao ser-lhe ordenado que se retirasse saiu batendo com a
porta.”
E
lá foi o Magalhães para as “enxovias” da
prisão militar do Batalhão de Caçadores 15
(BC15),em
Mueda, “atolar” as
ideias e refrear a língua num estágio de duas semanas.
Ufanava-se o
Furriel com castigo dado pelo Comandante ao Cabo quando naquela tarde
na
Messe de Sargentos entre as jogadas de King e as cervejas, comentava:
-O cabrão deu-me rodas de cão. Agora vai ele quinze dias lamber a piça para a prisão.
Passaram-se mais tempos, e mais perigos e mais guerra, e mais minas, e mais mortos, e mais feridos,
e mais dor e mais… e
mais….Foram mais quatro meses de mais “tanto sofrer”.
E o Furriel Miliciano Avelino da
Silva Duarte, o madeirense, meu camarada e amigo, iria ler,quatro meses
depois,
na Ordem da mesma Companhia:
“Que
agravo para 10 (dez) dias de prisão disciplinar agravada, a pena
de 05 (cinco) dias de detenção dada
pelo Snr. Comandante da C. Caç. 4140, ao Fur. Milº
Inf.ª N/M 17135871- João Avelino da Silva Duarte
por em 28Fev73 tendo por missão conjuntamente com o seu grupo de
combate de efectuar uma picagem
à pista de
aviação de Mueda logo pela manhã,não o ter
feito, alegando não ter acordado por motivo
de se ter deitado às
04H00 da manhã em consequência de uma festa, só
vindo a fazê-lo quando chamado
à atenção pelo seu Comandante de
Companhia.”
O que terá feito nesses dez dias de pildra o Duarte Furriel? Terá lido o Regulamento de disciplina militar?
Ironias,
outras histórias de guerra, a um tempo à margem e dentro
da guerra.
Não
duvidaria, nem por instantes, que em situações de perigo
e foram muitas as que juntos vivemos, o Cabo Magalhães
perigasse a sua vida para salvar o Furriel Duarte e vice-versa.
De ambos estes homens eu guardo boas memórias.
Do Furriel, o facto de certo dia
em Porto Amélia fazer questão de me acompanhar para minha
protecção, num caminho
que ambos desconhecíamos e
“talvez” perigoso e que me propunha trilhar sozinho.
Do Cabo
Magalhães, quando duma operação de assalto a uma
base da Frelimo, e já na retirada e ainda flagelados
a tiro pelos
“Frelos”(6), sofremos um ataque de abelhas, ele se deslocou
junto de mim e debaixo de fogo me envolveu
com o seu poncho(7), parando assim o cravejar dos ferrões.
A guerra em Mueda também tinha estas guerras, estas nuances.
Quarenta e
três anos se passaram. Nunca mais tive qualquer contacto com os
então Furriéis do meu pelotão: Duarte e
Lopes. Quanto ao Alferes Bonina,
fui informado que se terá suicidado em Portugal, uns anos depois
da guerra.
Notas:
(1) -
Espingarda automática Russa
(2) - Nome
dado aos soldados da Frelimo. (Frente de Libertação de
Moçambique).
(3) - Vara de
madeira ou cana de bambu com um prego na extremidade, com que se picava
o chão,
procurando as minas.
(4)
- Vagem parecida com a do feijão da qual se desprendiam
pós irritantes para a pele
(5) - Militares
de carreira.
(6) - Nome dado
aos soldados da Frelimo
(7) - Capa
impermeável
Manuel
Neves Silva ( Ex-Furriel Miliciano de armas pesadas )