Acabado o CSM em Tavira, apresentei-me em Mafra em Julho de 1966. Fui
colocado num pelotão, juntamente com um alferes do quadro, para dar recruta a jovens do COM
O quartel ocupa um bom espaço do Convento de Mafra, especialmente a parte lateral
e a traseira. A parte administrativa situa-se no rés do chão, estando as casernas nos pisos superiores.
Pela primeira vez tenho acesso á messe de sargentos, onde a alimentação é boa em comparação com
o refeitório de Tavira. Encontro novos camaradas e faço novos amigos, em especial o Alemão que
morando numa freguesia diferente da minha mas onde apenas nos separava uma rua. Quando estavamos
de serviço ao Sábado ou Domingo faziamos o fim de semana completo, ficando assim muitos fins
de semana livres. O meu novo amigo, o Alemão, dormia na cama inferior e eu na superior. Tinha
uma particularidade muito especial. Dormia completamente vestido com a farda número 2, meias,
calças, camisa, gravata e até blusão, faltando apenas as botas e a boina. Quando tocava para o
despertar, ele ficava na cama e só se levantava quando do toque para formar, saltando o pequeno
almoço. Sempre que se aproximava a Sexta-feira aí estava o meu amigo Alemão a chamar-me á
atenção para não me esquecer de lhe preencher o passaporte, pois até isso para ele era uma
" trabalheira ".
O pelotão de cadetes era formado por jovens oriundos de várias zonas do País, uns
mais comunicativos do que outros. Destacavam-se dois, oriundos de Braga, O Azambuja e
o Gisteira, o primeiro voltei a encontrá-lo em Mueda, já alferes, em circunstâncias muito
peculiares.
A messe de sargentos não tinha self service, sentavamo-nos a uma mesa já composta
por prato, talheres e copo e eramos servidos com uma travessa individual. Certa vez, ao almoço,
recordo-me bem, reparo que por baixo do prato está um pequeno papel, que desdobro e começo
a ler. Estava impresso e dizia qualquer coisa a incentivar-nos para desertar e relativo ao que
iriamos encontrar nas Provincias Ultramarinas, inclusivamente dizendo que nos punham em Paris.
Nada tinha que os identificasse, nada dizia sobre possiveis encontros.Fiquei surpreendido e levantei
a cabeça para observar se alguém dirigia o olhar para mim. Não observei ninguém e também nunca
fui contactado. Falei sobre este assunto com camaradas meus , uns conheciam outros não.
Já tinha feito alguns sargento de dia, nunca tive problemas até que apanhei um capitão
que tinha chegado da Guiné e vinha completamente cacimbado. De manhã, na apresentação,
disse-nos que já ia na segunda comissão de serviço e que não tinha paciência para baldas e
que não se importava em dar " porrada " na malta. Depois do toque de recolher segue-se a formatura
e chamada à Americana, cada militar chamado entra imediatamente para o dormitório. Ninguém
faltou, já deviam conhecer o " bicho ". Tinhamos uma FBP e um relógio que marcava a hora e o
número do posto visitado, através de uma chave que se encontráva em cada posto.Tudo correu
normalmente e no dia seguinte, pela manhã, entreguei a arma e o relógio e fui deitar-me. Ainda não
tinha começado a dormir, quando me avisam para ir ao gabinete do oficial de dia, onde estáva o
capitão cacimbado e o novo oficial de dia. O capitão estava sentado a uma secretária a observar
umas pequenas fitas gravadas pelo relógio e então começa um pequeno quase diálogo.
- Ontém falhaste um posto durante a ronda, disse em tom ameaçador o cacimbado.
- Fui a todos os postos, já não é a primeira vez que faço o serviço e conheço bem todos os locais, retorqui.
- Conheces um posto onde dizem que aparece um fantasma?
- Meu capitão quando cheguei a Mafra ouvi essa história, mas não acredito em fantasmas.
De repente o cacimbado dá um murro na mesa e recomeça o interrogatório.
- Na fita falta a visita a esse posto, arranco-te as divisas e vais como soldado raso para a Guiné, pois
quem tem medo de fantasmas não deve ser graduado.
Já não voltei para a cama, passei pela minha companhia e fui falar com o meu capitão para
lhe contar o sucedido, dizendo-me que se ia inteirar do assunto.
Passados uns dias o capitão da minha companhia informa-me que houve avaria do relógio ou da
chave do posto em falta, pois voltou a aparecer o mesmo problema.
O chamado posto do fantasma era o local mais afastado e era iluminado por um projector vindo
do exterior e que refletia nas paredes a sombra das árvores. Quando de noites com vento ali fazia um
" assobio ", criando-se assim o mito do fantasma.
Em Setembro fui integrado num grupo para fazer o rescaldo do grande incêndio da serra de
Sintra, onde faleceram 25 militares de outro quartel.
Acabou a recruta do COM, todo o pelotão foi almoçar á Ericeira, onde me foi entregue, como
recordação, uma caneta Sheaffer, que ainda hoje está comigo, e um relógio ao alferes.
Quase a acabar o ano veio o inevitável, a comunicação que estava mobilizado para Moçambique e
guia de marcha para me apresentar em Chaves, com licença de alguns dias. Mala feita , apanhei a camioneta
da Mafrense e dirigi-me a casa onde recebi o primeiro grande choque, pois a minha MÃE, que soube por
um familiar que me tinha encontrado na camioneta, estáva em lágrimas e inconsolável. Ainda faltavam
cerca de dois anos e meio para acabar a tormenta da incerteza que sempre pairou em todos aqueles que
receberam a noticia de estarem mobilizados.
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