O menino queria leite fresquinho pela manhã.
Ainda era muito chequinha, provavelmente foi na primeira ou segunda operação para o Vale
de Miteda. Ainda na flat, vesti o canuflado, calcei as botas de lona,coloquei o cinturão, já com os quatro carregadores,
coloquei a camisola de lã enrolada na cintura, dois cantis, cada um com um litro de água e o bornal, tudo colocado
a cruzar o tronco.Lá fui em direcção à arrecadação militar para levar munições para a G3 e rações de
combate para dois dias, dando-as também á minha secção.
Distribui as munições pelos dois bolsos laterais da calça do camuflado e , para não pesar muito,
deixei algumas latas de conserva e o restante coloquei no bornal.
. Como a maioria das vezes, o esquadrão levou-nos, manhã bastante cedo, para a picada
Mueda/Nacatar e deixou-nos logo a seguir á ponte, depois das águas.
Entramos na mata pelo lado esquerdo, e lá fomos, em bicha de pirilau, desbravando a densa
vegetação em direcção a uma elevação, que já não me lembro o nome.
Tinhamos vinte aninhos e uma excelente preparação física, as caminhadas eram duras e com o passar
do tempo o calor aumentava e o desconforto aumentava ao mesmo ritmo que que tudo começava a pesar. Finalmente
paramos para o nosso primeiro almoço do dia, que aproveitamos para dar descanso ao corpo. Iamos dois grupos
de combate, cerca de 45 homens espalhados, uns a seguir aos outros, pelo cume acima. De repente ouve-se a
expressão " ESTÁ NO IR, ESTÁ NO IR ", todos se levantam e a caminhada continua até até ao começo da
descida do monte, onde fizemos o tradicional circulo para pernoitarmos.
Ainda não estavamos na época das noites frias, mas já deu para vestir a camisola de lã.Como sempre
mal, e ainda por cima naquela situação, fui dar a volt ao circulo e verificar, na minha secção, quem deveria
estar alerta.Voltei para o meu lugar, junto do equipamento, quando me ocorreu uma brilhante ideia. Deitei
parte da bisnaga de leite condensado no interior de um dos cantis e agitei o suficiente para fazer uma mistura
uniforme, na esperança de, na manhã seguinte, ter leite fresquinho, deitando-me de seguida para descansar
o corpo. Os pés estavam muito massacrados e senti algumas dores. Dormi e acordei muitas vezes até que
nasceu a manhã e o barulho de todos nós aumentou. Preparei duas bolachas MM, com doce da África do Sul,
e levei o cantil á boca com a certeza de ser o primeiro leite fresquinho tomado no Vale de Miteda. Não
consegui engolir, além de estar azedo já estava um pouco sólido e penso que já fermentado.Tinha perdido
um litro da minha preciosa água e tinha ficado apenas com metado do outro.
Já estamos de novo a andar, com o avançar do dia o calor aumenta e tento racionar água e vou molhando
os lábios. A irregularidade do terreno continua a dar cabo dos meus pés. Paramos para almoçar e fico
surpreendido com a falta de alimentação para um almoço e jantar, que ainda tinha que enfrentar. O fim do
dia aproxima-se , em África anoitece cedo, e caminhamos no sopé da elevação em direcção da picada.
Pouco tempo depois aparecem os carros do esquadrão e entramos no quartel já com a noite avançada.
Todas as messes e bares fechados, dirijo-me á arrecadação de material, onde tinha deixado algumas
latas de conservas e levo-as para junto da padaria onde o nosso camarada estava a fazer pão fresco.
Pão quente com sardinhas e mais um lata de carne da marca "Frescata", cairam muito bem, mesmo
que a cerveja fosse substituida por água.
O tempo sensina-nos imenso, a partir daquele momento nunca mais botas de lona no mato, levei sempre
todas as latas da ração de combate e nunca mais " fabriquei " leite.
Pequena história contada, á lareira, na localidade de Olalhas, Tomar.
Novembro de 2016
José Fernando Pascoal Monteiro ( Ex- Furriel Miliciano )
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